sábado, 23 de junho de 2012

A RODA DOS EXPOSTOS, excerto


A espera.
As pedras que sustêm o círculo recuam ao gélido toque da sombra. Alastra-se, soberana, enegrecida de vingança, altiva de mantos, bruxa mordaz oponente impiedosa do equilíbrio, parca da discórdia, traição à certeza do gesto concreto: a sombra.
Dissimulada, a sombra estanca todo o luar vertido pela clarabóia e entorna-se demorada e esguia pelo chão, a tentar o silêncio como uma serpente que se assomasse inteira até aos pés do homem que prolonga e a que pertence sem que a eles dependa ou obedeça.
A respiração cadenciada do homem vertical é densa e suave e mesmo que a sombra o desafie a elevá-la ele sabe que não se pode expor. As mãos recolhidas na treva do manto iludem de estáticas, mas a ruga flectida entre os olhos denuncia-o. Do alquebrar vago do seu tronco admite-se até uma ponta de desassossego, apesar do homem vertical estar quieto, a sua sombra persegue as paredes e inquieta a respiração.
Além da respiração, o suspiro insinuado pela sombra omite o vibrar de chaves que entre os dedos escondidos tremem e o da que entre elas foi a cúmplice que abriu a porta para o imperdoável pecado do amor. A porta, o quarto que testemunhou a inseminação do profano, éden macabro de serpenteantes suspiros, oculto tantos degraus abaixo dali, mas é tão elevada a sua assombração. A abjecta crueza do ferro, o homem quer enterrá-la no sabugo das unhas – hereges da pele inocente -, para a esconder fundo na memória. Apunhala a chave pela cabeça e esmaga-a com a força do remorso. O sangue cavalga e na investida cega mancha os pés da sombra - a sombra de súbito retrai-se de ardor, presa do dilúvio cor de vinho-, o sangue viola o manto, o sangue intimida o luar, o sangue suja as pedras, pinta o circular som do silêncio. O sangue: seu único acto de contrição.
Ainda, no bolso, uma faca.
A espera.

Sem comentários:

Enviar um comentário