domingo, 30 de dezembro de 2012


Deus não ri porque é eterno
Os animais não riem porque desconhecem a morte
Nós rimos porque a esperamos
Por isso aproxima o copo do espaço estrelado silencioso e oco
E ri-te
E bebe as questões que a eternidade não quis responder
As cordas da harpa ainda repetem sob os rochedos
Há neles escamas de miséria que reluzem como amantes
E ouvem-se longínquos uivos dos ossos que duraram
Os navios
Nascem dos indefinidos olhos dos deuses
Até à língua do primeiro homem que vigiou o abismo
A última gargalhada de Cristo
Com o pesar da culpa ulterior na rouquidão da voz

A terra sempre resistiu aos clamores

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

"MELANCOLIA DA RESISTÊNCIA"


Conheci a beleza que nunca morre e fiquei triste
a János Valuska


As guerras circularam na conclusão da tua inocência
No eclipse de um inverno em que morfinizavas
Aconteceste no olho sagrado e triste
Onde os homens se dispersaram na ignorância
O oceano inteiro foi silenciado sob a marcha da ignorância

Perante aquele olho a impassibilidade da velhice foi forçada a olhar para trás
Como no vazio inicial onde
 Os teus pés foram forjados pela pureza da equidade do caos

Dispersa-te pela voz das feras que compreendes com
O terror das inocentes mãos frias
Onde há uma criança omnipresente como o voo dos sussurros

A tua aparição ainda dói as ruas onde te roubaram
E se hoje ainda neva é porque a tua sombra aconteceu pelas pedras
Porque a aspereza do tempo apenas te apartava do adormecer
Mas não ficava depois de atravessares a escuridão do cosmos
Com teu rastilho de asas de quem
Assistindo à lobotomia da beleza não é capaz de dissimular
Nem de marchar em coro

Não é verdade que os bêbados ainda dancem como tu lhes ensinaste
Nem que os velhos tenham entristecido um pouco depois da beleza
Mas sabes
Depois de ti
Há ainda uma pequena cidade coberta de branco e de anemia

sábado, 15 de dezembro de 2012

SONATA DOS HOMENS TRISTES



Onde foram os homens tristes?
Se os chamo, eles já não conhecem a lealdade
Peço o traço de sangue que cabe aos irmãos
E eles afastam-se lentamente como nos sonhos
As estações que se despedem
Não são as mesmas que regressam
O contrário é uma mentira que nos pregam
Para que continuemos a acreditar na ressurreição

Onde foram os homens tristes?
Quando esta cidade envelhecer será dia
De noite
Eles terão chorado perto dos cavalos como Nietszche
Depois partirão para Veneza
Onde nem a inocência os salvará da peste
Mesmo que com a certeza de que a beleza quando colhida
Não se tornará efémera como eles
Andarão pelas gôndolas como andaram pela vida
Conduzidos por Caronte desde o dia em que foram
De que lhes valem as raízes e as visões e a melancólica cabeça do inverno
Se a morte pôde condecorar de mágoa os pés da primavera?
Sim
Talvez as estações possam voltar as mesmas
Quando a tristeza dos homens tiver sido apenas um preconceito de deus

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012



Os cabelos não recorrem à sentença azul do antigo sopro
Os lábios cantam destemidos e nublados como o navio
Onde outrora os avistariam desaparecer
Depois da vergonha
Com as bocas roxas de espuma e limos e navalhas
Eles desacreditam os nomes imprecisos da solidão mendigada
“Jane Zelda Catherine Lizzie Nora Ofélia” dizem
E os vultos nomeados volvem em cada quarto as valsas de lume
Neblinas de lume a incendiar a esfíngica ideia sobre os pavios da opressão
A vela débil aos lábios na manhã desabitada sobre a secretária ondula
Um restolhar de papeis embriagados de tinta roídos de beleza oxigena
Ouvi ainda como as loucas cantam no cais do medo anunciado pela vossa poesia
Onde se insuflava a vossa promessa de velejar

São vossas as prateleiras escarradas de fumo de nódoas de êxtase
Mas escutem como as loucas voltam às estantes às mesas às palavras
Cuja opacidade adivinha o toque da pele envelhecida de séculos deliberados
E estremece ao despontar da claridade nas lombadas empoeiradas das alturas
Onde as aranhas edificaram asas no Tempo e as rosas pirogravadas ao longo da vigília
Adejaram para perto da folhagem escorrida para cima

À elegíaca vela os dedos antigos das mulheres amadas devolvem a extinção
À última valsa sob o nevoeiro descrente cedida na esquina de uma rua oblíqua
Absolvidas de noite
Escolhidas por um deus sem nome que as obrigasse a repetir-se
Com voz de poetas deus disse-lhes
“Submeteram as palavras indefesas a encerrar os olhos”
E elas abdicariam agora das palavras celestiais se pudessem
Esperariam até no inferno que a espera é a mesma em qualquer imagem
Benevolentes mesmo que coagidas pelo epílogo dos edifícios a descontinuar-se
Desde o prelúdio loucas ainda hesitam no cais cravado na manhã
Com as mãos trémulas de caligrafias de divãs de pavor
Suas silhuetas reminiscentes ainda aguardam e sorriem e metamorfoseiam
Mas a melancolia ainda se sente
Cruel

Excerto de romance

O Frio é o companheiro de todas as horas do Sr. Américo e mais uma vez fielmente o espera à saída do bar. O velho chega à fábrica a abanar a cabeça ao som dos animais que caem pelas chaminés e abre a porta de sua casa e não a torna a fechar para sentir o Frio inteiro nos ossos. Arqueado como se conspirasse, vai direito à poltrona de veludo verde onde se sentava com Margarita a ver televisão. Deita a mão à mesa de apoio, acende o candeeiro de luz cor-de-rosa e da gaveta retira uma corda, cuja perfeição do laço o comove sempre. Deposita-a cuidadosamente sobre a magreza das pernas. Com os dedos engelhados, percorre as curvas sinuosas e antigas da corda, o intricado de fibras, como quem afaga o pêlo de um pequeno gato. Na verdade, quase pode ouvir a corda ronronar. Sabe que não precisa de pensar muito para saber o motivo pelo qual a sua mulher quis terminar com a própria vida, mas a velhice é uma óptima desculpa para esquecer. 

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

O Anjo


Ofereço flores murchas a uma puta solitária
Talvez mais solitária do que eu
Sua sombra esganiçada de gritos explosivos agradece
E quem sabe aponte a minha própria sombra
E eu veja que ambas estão apaixonadas
                                               ao poeta Alisson da Hora


Ao meu inimigo dei o dever
de ser eu
não podemos enforcar-nos ao mesmo tempo
sob a mesma metáfora

dei-lhe o dever de como eu
um poeta como eu
Homem como eu
esperar
porque o Homem foi feito à imagem dos precipícios
os precipícios foram feitos à imagem do amor
o amor foi feito à imagem da morte
a morte foi feita à imagem do esquecimento
o esquecimento foi feito à imagem de Deus
Deus foi feito à imagem do Homem
e ele conseguiu olhar-se todos os espelhos

- Então, vamos?
- Vamos     

Não nos movemos

terça-feira, 20 de novembro de 2012


Adormeci à manhã entreaberta
Com o odor da noite ainda no sangue do nome
Que esqueci de proteger da recordação das rosas
Adormeci         
Nesta cama nesta cama de gritos
Onde a menstruação procura o retorno ao corpo vazio
E não encontra o princípio do pecado ao lume da única vela

Como as mulheres que fui se revolucionaram pelos becos!
As sombras as sombras diluem-se no rio aos pés da antemanhã
No escuro das metáforas
À luz das crisálidas devoradas aos amantes antecipados

O rastilho da impotência a beijar a pele dos homens
Como são dóceis quando da fome restam apenas as migalhas!
Os punhos erguidos à intransigência das eclesiásticas razões
Rasto de lobos na insipidez de uma palavra amargurada
Não vêm nada os olhos impedidos pelas mãos de agarrar as palavras
As palavras que partem do centro do fôlego até ao convexo
De uma vagina canonizada pela liberdade
Emancipada loucura ser!

Adormecermos é a nossa única semelhança
Os loucos andarão pelos sonhos como os mentirosos
Também as virgens serão esquecidas
E a ternura poderá exalar a tinta do nome às rosas segredadas

Oh adormecer
 Com as palavras cerradas no precipício pesadelar das formas
Com as mãos inacessíveis com o brando murmúrio mórfico sobre os olhos
E a minha condição não estremeceu ao sentir o seu sopro
O sopro morno de quando a morte é apenas uma reminiscência
E deus é uma criança perdida que sorri por não ter respostas
Oh adormecer interiormente na memória
Adormecer tristemente melancolicamente nas ruas lúgubres
Com a manhã inteira a mendigar metáforas à ternura do passado

Espreito a morte no restolhar das folhas do sono
Nada mais estremece
A pele primordial e eterna já não estremece
A pele consolidada e silenciosa já não estremece
A pele harmoniosa e terna já não estremece

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Excerto de Romance

A velhice do Sr. Américo revela-se agora a Bel mais do que uma questão capilar. Não é sequer na curvatura exagerada da coluna nem naquelas mãos áridas que ela se manifesta. É mais profunda até que as adegas daquele olhar voltado para trás. A velhice do Sr. Américo está enraizada no definitivo do seu espírito imutável, num carácter de sedentarização do pensamento que já não admite uma procura de uma nova razão. Mais do que tudo, é uma vontade para confidências que Bel não compreende. O Sr. Américo já passara a idade de se envergonhar e a mesquinhez das suas palavras não consegue fazer sequer com que Bel se apiede dele. 

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

CTONIA I


Que a visão derrotada sobre os pulsos
Esconjurados pela combustão da rosa por oferecer
Essa que a retina empederniu no lento adeus
Com o reconciliar da loucura se vertesse lúcida


CTONIA III


Dá-me
A toxicofilia clarividente dos elementos que possuis
As mãos assim amarradas já não podem deter
A aparência dos pretextos com que deslocas os corredores
Sussurra-me
A alquímica coragem com que desapertas as escolhas
Encadernadas de fora para dentro
Arruína
Da terra privada dos bolsos o lume da tua mão esquerda
Onde os homens que me amaram se submetem à tua tirania
E conclui o mármore do teu silencioso sexo
Porque a singularidade da beleza jamais permitirá que sejas de alguém

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

PRIMEIRA CONFISSÃO


Que encruzilhadas escondes na nudez do teu uivo?
Apieda-te dos emancipados mistérios do incesto
E murmura por favor na melosa melancolia dos espelhos
Podes abrir a janela e trazer-me um copo?
Só tive direito a uma dança sobre a tua cama
Perdi-a para a reencarnação ulterior
Sei que imitas os livros que te silenciaram
Somos esquissos da fantasia do mesmo deus
Mas de que serve vasculhar a verdade
Algures nas palavras onde ele a escondeu
Se a morte ainda não foi reinventada
E a imortalidade se apaixonou pelos reposteiros
Onde se encolhe como uma criança e não nos cabe?
Oh gloriosa inutilidade romântica deste asilo do evocar
Esses cemitérios onde pudemos cuspir sem que ninguém descobrisse
Estes mortos recordados nas assombradas pétalas violeta do riso
Oh as tuas mentiras magníficas que fazem as lendas corar!
As tuas certezas secularmente sacrificiais!
Desprezo-as, cantando-as
Como poderás ser um bom poeta se temes a morte?
Desprezo-te e canto-te
Minha oblíqua insonolência transfigurado reflexo da dúvida
Mudez enegrecida de neve condensada no olhar
Odiosa verosimilhança dos contrastes no escuro
Ficção doentia dissimulada no disfarce do corpo altivo
Desprezo-te e amaldiçoo-te, lixo de luxúria
Corrupção perfeita consciente e vil
Danação com presunções a negras asas de anjo
Elegia excomungada do amor
Cauchemar cauchemar

quarta-feira, 3 de outubro de 2012


Demito-me das convicções pelo hábito
Das lágrimas arriscadamente íntimas
Do mutismo que fica depois de nos atirarem aos cães

Demito-me da saudade e dos retratos de sol
Sobre os rios que aspergem o norte consciente
Aos límpidos pés da noite clara e aberta como uma praça
Com seu planar de abutres e de papeis e de passos em eco
Demito-me da memória púrpura da beleza
Incendeio a morte à ponta dos cigarros dos dedos dos cabelos
Da abstracta saliva dos beijos recordados

Demito-me
De esperar os pós sobre estes olhos malditos
Morfeu está cansado! O poeta é morto!
Os versos nunca poderiam ser insubstituíveis…
Demito-os
Deportei a poesia para o país que lhe compete
O silêncio dos rumores dos filamentos das raízes
 Onde os dedos a suprem de cabelos evocados no rasto tinto



Descontinuada aconteceu chuva evoco-a sozinha
Acontece que ainda creio aquaticamente
Comemoro-a sozinha
Bebo-a sozinha
E a solidão é apenas o interromper entre a chuva
No silêncio suspenso entre ela e o universo

Versos são quartos provisórios
Dilúvio de mortos acesos
Asilados anoiteceres pelas paredes
Onde a ironia está de luto há
Fragmentos translúcidos de demências
Catalepsia os outros
Nós somos tão poucos
Tão poucos para aniquilar

Sulfúrica perturbação de amanhecer
A vista cansada

sábado, 29 de setembro de 2012



Longínqua ainda se ouve a ébria conclusão do mar
Hermético sal que ao incendiar se une nos passos
Açucarados cabelos da expectativa nocturna
Os aproximados beijos da estátua espinhosa

Silhuetas reunidas no sangramento das esferas
Trilhos de hera nos pés condecorados de evasões
Descem para o interior da Hora as silhuetas
Ressurgem na imortalidade rosas abreviadas
A luminosidade prateada do respirar ascende reencontrada
É meia-noite
Ofereceram-se as mãos

Escuta
Finalmente chove

domingo, 23 de setembro de 2012



O estro adia a estação onde tropeçamos outonalmente nos nomes caídos
A comoção dissolve lentamente as verdes paredes do sono
A claridade vencida já não consegue curar os filamentos das folhas
Nem o sentido de tempo nem as ruínas dos dias indigo na abreviação de lábios

No azularem-se as nascentes dos caules dos búzios dos ossos negros gravados
Na água que propõe o desígnio das limalhas dos desertos interiores
De naufrágios cauterizados de conquistas acidentadas de lodos e de nenúfares
Enquanto as chuvas não chegaram para entornar o mar para fora do abismo
As rosas foram dolorosamente arrancadas ao sono logo depois de inventadas

Nas aquáticas detonações da vontade aninhou-se a obsessão pelo amor
Como se essa palavra fosse encontrada pela primeira vez
E o universo atento e inteiro se movesse por ela
Como a uma matriz a que todas as outras palavras quisessem regressar
Como pomos repetidos bagas renovadas alternadas na escassez de um abraço
Para convirem ao poema arvorado com a profundidade marítima emancipada

Há sempre o impedimento das travessias às palavras mais escarpadas
O amor não consente uma redenção o amor não foi ensinado a omitir
Conhece a sua própria dívida como um princípio sanguíneo a que abjurasse
Por isso o forjar da espera é maior do que uma esperança
É a humildade da espera que deixa a porta redentora encostada
É essa palavra que coexiste com os vultos inomináveis dos espelhos
É a partir dela que a assimetria de todas as outras aflui na limpidez
É nas dunas do remoto corpo adormecido que a pele se consagra
À existência salutar do inextinguível desígnio 

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

A ROSA ABSTRACTA


                 j'ai cru te savoir par touts les noms muet, anticipé de l'amour
                Ao Tristan

Cumpre-se a neve contra as artérias
Cumpre-se o homem o sangue (d)a rosa abstracta
Cumpre-se a porta de Hamelin:
A imaterialidade de um menino que dorme
(Voltado para baixo com a mão sobre o alento
Com a mão no abdómen com os olhos algures
Supõe-se protegido quando em cinza se disfarça
Entre o amor e o lume dos pêssegos reinventados)

Órficos os passos ofídios e sete cigarros vezes sete
E uma noiva que acaba na gravidade da fala
E a prestidigitação de versos nas mãos ilusionistas
Célticas frias tão escassas – as mãos

Explicavas
Como quem procurava ajustar o silêncio
Explicavas
Amo devagar os amigos que são tristes
com cinco dedos de cada lado.
Os amigos enlouquecem
e estão sentados,
fechando os olhos,
com os livros atrás a arder
para toda a eternidade.
Não os chamo,
e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.

Herpéton por uma cidade luminosa a oscilar na opacidade da noite
Herpéton onde o álcool e as horas nos empurravam contra o crescimento
Com as palavras a escapar dos cabelos, perto da música e do propósito
Com o estalar da cumplicidade às pontes dos dedos
Sonolêncio,
Retomas ainda a experiência de luas por escrever
Espera, escuto:
-Temos um talento doloroso e obscuro
Construímos um lugar de silêncio
De paixão.

Volvidas as estações e as noites,
Meu irmão,
Há que voltar para casa
E amadurecer

SÓ AS NOITES DEPOIS DA DESPEDIDA



Só as noites depois da despedida se podem celebrar musas
Com seus cabelos de tenebrosa avalanche de dúvidas
Seus dedos pálidos de alegoria de catacumbas
Sua infinita boca de hermética humidade a ecoar
Seus crípticos olhos de alheamento cruel e breve

Só as noites depois da despedida são as únicas futuras
De pés aos farrapos adiados pelos subterrâneos das estações
Com os flocos da intuição revolvidos dos invernos em suspenso
E o órfão nome da besta tremulamente domesticado pela espera

Só as noites depois da despedida se podem considerar definitivas
Onde encalharam os marinheiros de pó e o nevoeiro dos abismos
As pontes velhas desmoronadas e as luvas dos homicidas cauterizadas
Os gritos adormecidos na confiança da revolta pelo sangue de alguns poetas
As viúvas e as amantes e as filhas e as prostitutas e as anónimas que acreditam
As convulsões depois das feridas e o choque e o asfalto das palavras caladas
A combustão das crianças e dos cigarros que continuaram a caminhada
Os livros que não conseguem morrer
E que adormeceram na esperança da ressurreição ámen

Só as noites depois da despedida são de resistência
Porque diante delas a poesia cumpre-se mais sincera
E as janelas ainda obstruídas abrem-se para os lagos da miséria
Nos quartos da alma acumulados de certeza até ao tecto
Inúteis como polícias na cena de um crime
E os panos dos espelhos cedem ao olhar compassivo sobre ele mesmo
O olhar cansado onde o adeus às lágrimas começou há tanto tempo
Sobre os livros cravejados de rosas mordidas que ainda respiram
Por quem os sinos dobram como o ano da morte de um amante
Que atravessou o meridiano onde a leveza de carácter era insustentável

Só as noites depois da despedida são a perturbação da verdade
Onde se adoece pelos vendavais do medo como uma andorinha ou um gato
Por cento e vinte anos de solidão e cólera
Noites de inferno inclusas num pêndulo ao pescoço
Como um Quixote sem ficções
Como quem espera ver o anjo o corvo
Um pequeno príncipe em desassossego

É nas noites depois da despedida que os festins estão nus
Que se anuncia a cama
No pináculo da montanha mágica onde o paciente iluminado
É um deus de fogo agrilhoado e nu que se levanta
Um viajante em busca de um tempo perdido
Numa noite de inverno ao fim da tragédia

É nas noites depois da despedida que os pauis ganham sentido
A aparição revelada de um deus sobre as ondas com as duas tábuas da poesia
Um anjo maldito que sobre as moscas e sobre as ratazanas partisse
Ao som da flauta que um velho toca lá longe no fim do mar
E mesmo que a tabacaria tenha fechado para férias,
Que os que se amam se reencontrem na fome e na náusea do escrever

NO INTERIOR


                     
             “For sale: baby shoes, never worn”

Exalto
As moléculas medusas de momentos das manhãs memória
As mães
Nas mãos transparentes das crianças trémulas
Ainda a pisar sóis a queimar as heras
A ceder a inocência aos bosques da sabedoria
Onde os assassinos coleccionam a cortiça estuprada
Para apaziguar a velhice dos astros divinos
Com peso a mais nos machados para conseguirem sorrir

Sob a noite o lume certeiro das lâminas manchadas
Sob as contas siderais dos coágulos púrpura
Orvalham intoxicados fantasmas inocentes e inseguros
Há uma ama com asas de anjo a persegui-los em cada um de nós
Há um machado que julgámos puro a silvar na erva
E rodas infantis impiedosas espalhadas pela floresta como ampulhetas douradas
E a lua em contagem minguante a pratear todos os silêncios





O DEUS DOS PEIXES



Poderão os peixes com eixos de bicicletas saber
A que distância estão as estrelas do deserto marítimo?
Saberão ainda os homens quais os búzios de onde se escuta melhor a noite
E que sustentáculos suportam os polvos que habitam a lua?

Poderá deus indicar-me um nome apenas um nome
Ou alguém que me diga quais os deuses que os peixes escolheram?
E tu poderás pôr o braço à minha volta por engano
Sem nunca te apiedares de mim?

Podem pôr a tocar a decadência?
A jukebox deu o berro porque o deus dos peixes preferiu a madeira
Os homens já não procuram os búzios por entre a noite
Os polvos da lua caíram ao mar quando a música acabou
Deus não tem nome, é analfabeto
Levaram-te para a catedral e cozeram o teu barro à parede
Deixaram que os teus braços se partissem durante o processo
E ainda há quem acredite em milagres!

MOTEL



Os passos de quem uma vez soube andar estão à saída
A trás a parede onde a porta ausente acusava o conforto
À frente o copo desabitado do bêbedo o litoral ilimitado
Ele não respira e os passos avançam lentos às apalpadelas
Para a cama sobre a montanha com a canção pronta a encantar
Que intimida e acode e confunde numa estadia fugitiva na insónia
Os papeis que a mala não impediu de se dividirem
Os pathos e os logos e os eus e os outros extraviados no universo
Porque é na maior ressaca que um homem se afirma
Uma lâmpada à mesa inversa vibra como uma mão idosa
E os passos encalham nos dentes imorais da vergonha 
A beleza como a única meta decente é incerta como uma criança
E os pulmões comprimidos de Espaço suportam o adiamento
No suspenso dos quartos provisórios insondados tão banais  
Onde nas portas sempre a mesma oração de lâmpada embriagada oscila:
Onde há hoje a maior firmeza já houve a maior derrota

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

amor

Amor
Que o teu corpo brutal se desdobrasse asas                                                                   
Um dia só das clepsidras em cujas cores a dimensão do amor se afirma
Com a honestidade do silêncio cinzelado de brisa
Assim leve a interrogação que é o teu corpo descoberto
Apaziguasse
A tempestade e o tumulto dos sussurros do toque
Pleno de mácula o corpo porque é do sujo que se ergue a convicção
Como se da fermentação dos poros a alma se reabrisse clareira
Do reflexo buscado fora dos espelhos para não despertar

Que morresses
Para que a beleza do sono te tocasse e eu sentisse culpa
Para que enfim pudesse dormir encostada à tua aquática morte
Ou diluído como quando vinhas e tudo voltava para ti a cabeça
E todas as cores se assombravam à tua volta
À volta da tua impassibilidade
Até à humidade do meu olhar

Quero
Repetir
Amor
                Ainda que a tua morte me seja doce nos lábios
Sei que escutas a minha sombra deitar-se sobre o teu mendigo adormecer
Por detrás das acções das novas peles sei que a sentes mesmo no adiamento
E que para teus passos vazios converge o rumor dessa palavra
Oculta na chrónica imortalidade do nosso nome

domingo, 16 de setembro de 2012




Pela morada-norte com seus peixes de linhas de letras inscritos no sopro das paredes
As navegações pela porção de sobras pelos frascos de vidro pelos olhos
Onde se acolhem o verde adocicado do ópio as chuvas de agosto
À procura da voz salgada de declamar os veios das conchas os fundamentos das cascas
Com as mãos ainda protegidas na mesa a resgatar da madeira o estro dos trilhos
À espera do olhar descido do olhar complacente que se obriga ao pretérito
De quem tem agendada a morte para o dia imediato e é tão humilde ao amor

Os dedos brincam com as espadas sobre o corpo:
São dolorosas as invasões do espelho que não permaneceu
Os peixes que se formam do pó da reminiscência não cumprem coisa nenhuma
Conto-os e eles continuam a multiplicar-se se fecho os olhos
Não cumprimos o real nem eu nem esta morada nem a memória
Ela que ainda raspa as unhas na madeira submerge nos cadernos
Circula
A prata das canetas o negrume dos isqueiros ela que não se concilia com o lume
Que estranha o peso dos livros e proíbe a chuva com sua decisão de escuro
À procura de uma voz salgada que emerja das quimeras como uma bússola


sexta-feira, 14 de setembro de 2012



Onde estavas no Princípio
Quando a verdade ainda não tinha estalado
E as plantas ainda podiam mover-se?
É tarde
As cidades arvoraram suas colunas de ferro e medo
E os jardins murados respiram o vapor de uma ácida utilidade sulfúrica
Desconhecerás a decomposição da beleza pelos largos e pelas esquinas
A evasão dos mortos para outra consistência que esta está cansada de poluir
Os sulcos cinzentos das asas da mariposa singular que sobrou
E o sinal das serpentes que ousam ainda sustentar a terra lavra como um veneno
Abrevia tu a extensão que separa a casa das estrelas cá em baixo
E senta-te comigo perto das labaredas dos objectos impossíveis
Sem contemplar no escuro recorramos à memória para dar as mãos
Invoquemos um e outro para que os salmões reapareçam para que os imitemos
E beija-me como no princípio como se ressurgíssemos
No final da velhice sussurrada com os cabelos oxidados de terra

quarta-feira, 5 de setembro de 2012



Mendigo noite um pouco mais de lume
Um pouco mais de fumo um pouco mais de versos
Porque é preciso encontrar na ausência
A plenitude de um próximo dia solar
A palidez da árvore amparada desde o escuro da raiz
Até à verticalidade de um poeta de inverno
Suspensa na insónia com a força de embalar


Fátuos passos votados ao jardim suspenso
Absoluto circular de um eterno gesto poente
Uma mão na intemporal poesia dos espelhos
Os dedos esguios de quem busca a verdade
Uma esperança
Como quem espera o poema intransitório
O poema nomeado mulher ausência
Na perseguição criminosa do silêncio oculto do amor

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

CTONIA


II

Que serpenteantes os teus lábios se curvem
Numa obstinada oferta de compaixão e crueldade
Que as espáduas cíclicas aterrem acima do juízo final
A importância de um acto arrogantemente humilde
Na languidez transpiratória do perdão prometido tão desejado
Que se despedacem os dedos no epicentro da vertigem
Colados às líquidas membranas do ódio da faringe
Alaranjados túneis da fluida comunhão egoísta
Exorcizadas rimas de êxtase
Goles de uma sanguinária espera
Paragens em movimento descontínuo continuadamente
Abruptal hermético teu corpo insaciável e definitivo

quinta-feira, 23 de agosto de 2012


Que a visão derrotada sobre os pulsos
Esconjurados pela combustão da rosa por oferecer
Essa que a retina empederniu no lento adeus
Com o reconciliar da loucura se vertesse lúcida

A NATUREZA MORTA



Ladrilhos de hora fragmentos de ânsia
Não saber que peles as que respiram
Vazios centros de húmidas espirais de incerteza
Lugares sem ter para onde claustrofóbicos trens

Louças de espécie porcelanas de escada
Longo uivo do chorar
Caiado de poentes degraus

Fome nas linhas fome nas asfixias
Fundamento estrangulado no muro
Causas de cal de imperceptíveis ausências
Manhã aquosa manhã vácuo manhã às lacunas
Caudaloso frio sublime impotência
Provindo mofo

Natureza morta da intenção
Laranjas aos fragmentos na escassez
Culposa amputação do translúcido -
A boca excessiva 

quarta-feira, 22 de agosto de 2012




Ouve
Houve um eco que a secura do olhar arrastou
Era indispensável para o escurecer das clarabóias

Dantes
A velhice passeava nos cabelos
Agora subsiste nos erros mais opacos
Nas depressões das almas mais escusas

Talvez
Quando encostares o ouvido ao gato
Como eu ouças o poço marítimo do sono
Os ossos rastejantes de uma voz de bosque
Os pigmentos líquidos da alucinação

Hoje
A carne das estrelas tornou-se mole
E as asas não conseguem suportar o peso dos pássaros
Hoje a cidade é um convite amoroso e doentio
Quando é meia noite e a carta não chegou a aparecer

Depois
Quem pode ainda envelhecer economiza as palavras
Porque o amor nunca soube morrer prematuramente

.




Que se insurgissem as mágoas
Contra as caves do desespero
Tanto faz
Que aos que desesperam nada mais se lhes estende
A não ser as cordas

A música que se ouve é a nudez de um pé nos estilhaços
Mercúrio contra a descontínua pele dos abraços
Sobre uma rima interpolada e breve

Afinal a casa estava trancada
Como sempre
Preveni-te de que estaria
Mesmo que tu me repitas que te vou encontrar lá

Memorizei as unhas que arranhavam a porta
Ainda te quis pedir permissão para as baptizar
Mas há brancuras demasiado puras para poder mergulhar na pia

Não não me lembro quem disse isto
Tu ou eu
Confundo os avisos que aparecem de vez em quando no frigorífico
Sei de cor a saliva que os mantém mas não
Já não sei quem disse o quê
Sabes, acho que estamos a ficar lúcidos

Emparedados os nomes adoecem

Sobre a mesa
Todas as mãos se inverteram ao mutismo das coisas livres

Dizer nós para que o sol resulte pelas saliências 
Como uma cegueira da alma
No silêncio sem um queixume
Como quem não se consegue adormecer?

Quantas vezes não esperamos uma inutilidade complexa
Um galho que subitamente nos dividisse sozinho
A sombra déspota que ao se descobrir nos invadisse

Talvez a História seja um pequeno pomar em declínio
Com os ramos perplexos estendidos
Como os braços de alguém que se afoga
E deles desçam os frutos sobre a ignorância da paixão
Rolando sobre a simplicidade dos seus joelhos
Humedecidos de ocaso

terça-feira, 21 de agosto de 2012

OS AMANTES


Os amantes verdadeiros são monstros disfarçados
Com fantasmas às janelas da língua
Pendurados
E o nome sigiloso espraiado na voz

Os amantes verdadeiros são as pedras no lugar dos olhos
Com pontes de mármore na cidade nova
Pedras que não nos avisam onde vão cair

São o lume da casa pequena abandonada
Aparências obscuras brancas em redor dos pulsos
Um rumor de cativeiro na bifurcação das estradas
O carrasco alongado do vício e duma renunciada fome

Os amantes verdadeiros são ligaduras de ontem sobre os dedos
Que o sal amanheceu e repetiu às veias interrompidas
O Outono que veio mais para perto na brancura dos glóbulos
A acreditada morada nas mãos enlevadas - a oscilar 

quarta-feira, 18 de julho de 2012

SÍSIFO


Talvez tivéssemos ouvido um grito
Se lá em baixo os suicidas recebessem
As cartas dos seus vivos na pausa para o almoço
Enquanto fingíamos os ventos do sono

Um caleidoscópio que se estilhaça na erva nocturna
Um arco-íris que um unicórnio vomitasse
Sobre a duração das rosas
O tiquetaque imperturbável de um baloiço
Entre o milagre das armas nucleares suspenso
Acima do campo interminável da repetição

Talvez um choro quase imperceptível
Quando o fantasma se espanta antes da porta aberta
E um velho tossica por trás do remorso
A resistir ao rapaz sorridente dos espelhos  

Lá fora a obscuridade do poeta à chuva
Um instante numa rua intermédia
Em alguma parte do esquecimento
A coleccionar recortes de beleza:
As borboletas transitórias das nebulosas
A luminosidade fria dos pirilampos
A detonar na escuridão

terça-feira, 17 de julho de 2012

SONATA DOS HOMENS BONS


 Este é o tempo da contenda aposentada
Esta é a geração dos clubes a especular através do vidro
Dos bandos a sobrevir nas esquinas, mansos
Mudos míopes sequiosos da colossal voyeuracidade – os outros
Perpetuamente os outros às portas do lixo os outros
A partir garrafas de cobardia aos oportunos muros da aurora
Cúmplices da distinta fausta infértil masturbação do grande olho
Que tudo vê
Esta é a geração do tráfico da desprovida ideia postiça
Dédalos televisivo do consumo hiperactivo e da inércia
Logro dos prostrados no trono do serviço comunitário
A esperança verde dos recibos o pingue-pongue dos partidos
Vidros de garrafas fundeados à narcótica publicidade da falta
À raça pasteurizada em manifestos vãos de liga
À raça dirigida pela obstinada e energeticamente renovável
Praxe veterana tecnológica bala de pingue-pongue
Este é o tempo dos comboios que acabam na caução das moradas
O tempo da demolição dos sótãos primordiais onde
O grito mudo dos pássaros consumiu a asa devota da viagem
Este é o tempo dos apeadeiros funerários da coragem

Velhas beatas aos pés da embriaguez chuvosa dos caminhos
Penhores de fome numa impermeável vigília de eléctricos metros
Maçónicas finanças férricos edifícios claros punhais
Uniformes em putos artilhados de unívocas adulações
Postos em secções a jogar PS a lubrificar altos comandos à chapada
A embolsar o coro dos tribunais

E o escarro da mentira aos pés do oportunismo
E a plebe promiscuidade da droga no denso do escuro
 Manipulação do verbo em ruído de quedas vis
Corrupção do amor projectada aos espelhos da vontade
Esmigalhada até ao arrependimento estilhaços de cansaço
Fragmentação do tudo um querer sem pensar futuro
Arrogância arranha-céus dos cativos da noite
Posers a preto e branco pela Rede a exibir santidades ídolos pruridos
Doenças intelectuais despejos mentais só para vomitar a preto e branco
Ascos de réplicas infecciosas colectividades estéreis a berrar à lua cheia
Vaticínios de transpor as janelas e emudecem para beber mais um copo
Só mais um só mais um para pular tão-só as janelas do amórfico sono
Até à varanda da miséria
Até o sol comutar a lua e lhes crestar a baba do vício do fingir na cara
Cremada de nicotina de versos que ousaram ser clandestinos de crenças
De lúbricas estaladas de engano mera altura de varandas lambuzadas de pombos
E os motores a malhar na acção curva no levantar. Noite nova dosagem ácida
Em câmara lenta

Este é o tempo
Da contenda aposentada
Este é o tempo do verberar os outros até ao logro
O tempo onde a inventar o futuro
Tropeço entorpeço arrefeço
Evoco porque esqueço
Que não foi pelo ódio nem por amor
Os homens bons emudeceram por desprezo.


De 18 a 23 de Março de 2012






















sem título


A elasticidade das ruas
Cabe-me inteira no inexistir
Conceber sem o cruzar de um abraço
É preciso morrer digo
É preciso abandonar como a chuva
Que sobre a calçada de Novembro
Se morre sem conhecer

Chove-me nas entrelinhas

Chove-me nas entrelinhas

Chove-me nas entrelinhas

segunda-feira, 9 de julho de 2012


A terra em linhas rectas respira
Há uma emancipação de pássaros na claridade deste amanhecer
E sombras deslocadas desde o princípio

À sombra das árvores grandiosas
O dia que as invoca
Há frutos que palpitam como chagas
O carbonizar dos homens define as cores
E restaura aos poucos a esperança

Quando passavas
Os outros falavam mais alto

terça-feira, 3 de julho de 2012


Ser diverso
Com as espinhas do desassossego ordenadas exactamente
Amparadas dos veios às clavículas ensanguentadas
Onde a nódoa seria apenas a perturbação da poesia

Com a consciência nos espaços despovoados
O olhar nas cúpulas marmóreas da aspiração
E os cautos passos de quem uma vez supondo
Mostrou que os alicerces são a peça mais bela
E que é no sal das lágrimas que se ergue o leme de grandes navios

Mas só a abstracção da criança transparente sabe
Da limpidez das ampulhetas a ironia
Do dormir os sonhos mais demorados
O supor de uma quimera primordial
Imperturbável

Para nós há a fome comprimida
Nos copos vazios a tentativa de uma redenção
Ao final da noite no ângulo certo
Mesmo a rosa amparada interiormente
É o sonhar rosa adentro em espirais
À tentativa de um grito esperado:
A palavra prudente a palavra aplicada
Erradicada do fogo madura e pronta
Desde o princípio

E sabemos que a filantropia é egoísta
E que não levaríamos os mendigos nos bolsos
Mesmo que eles nos pudessem ensinar
Os corredores do sono
As galerias mórficas da cidade oca

Ainda tentamos ser diversos
Ter crianças dissimuladas caóticas obscuras
Protegidas nos veios nas clavículas ensanguentadas
Onde o medo será apenas a perturbação da poesia


sexta-feira, 29 de junho de 2012

A RAIN AT MIMIC


De onde acorda a força para
Continuar o olhar procuradamente
E os sulcos dos lábios. de novo inaugurados
E a chuva. nocturna. comovida
E o voo dos dias iguais. que persiste
E a perseverança na emancipação
Ainda?

Há botões demasiados na razão
E as bainhas estalam. a chuva
E se as pétalas estancam. se decompõem
Inversas aos espinhos que enrijecem
De onde a persistência abolidora dos relógios
Dos poemas não conclusos?

Aqui em baixo
A cidade é fugitiva. transitória. oculta
Na sobrelotação de uma época evadida
De uma época fratricida
A cidade é. sempre noite
A chuva. abandona-se
Desabitada:

 A calçada explode sob os intrusos
As janelas. ateadas. onde o fumo irrompe
Aos corpos despovoados. em que o olhar persiste
Como se colhesse os gestos para dentro dos bolsos
Como se disfarçasse. compreender,

Os trajectos alucinantes das claustrofobias
Uma carência do sorrir. as transições metalúrgicas
E as narcóticas vigílias dos espaços ilimitados. poluídos.

Depois
Os mimos. com as modestas lágrimas da companhia
Com isolados gestos. o toque. aos objectos inexistentes
Ausentes imaginários. mimiquiméricos
Com os cabelos a perseguir as bagas mórficas da chuva
As cinzas. e alguns cardumes de lume
E beijos remotos nas almofadas de outros quartos
Por baixo
Intimamente
No sono

Há cadernos dispersos no estrondo das avenidas
Nunca hão-de cair. antes do silêncio
Há paisagens prontas. e silenciosas. e gestos
Na luz. e na sombra
E mãos de noite. enluvadas. que se antecipam ao encontro
Veladas

Mímica. à chuva
deus é desespero
deus habita a transparência das lágrimas

Que cartas


Mãe, que cartas
Por que rumores escondidos
Por que árvores interrompidas
De homens discretos
Esquecidos
Por que gestos de neve
Por que delírios de mar breve
Te deveria escrever?

Que mutismos brutos
Te retalham os pés
Enquanto transitas as minhas palavras
Que promessas
De relógios ocultos
Eram as badaladas
De quando falavas?

Mãe, que cartas
Presas à corda de estender
Do quintal do meu adiamento?

Que cucos pararam de cantar
Na sala de lume de minhas primaveras idas?

Junto ao fogo das fábulas
A avenida das iluminuras antigas
E tu que alisavas flores
Tu que acomodavas a paixão
Nas prateleiras do teu tédio
E eu que sabia tuas cores
Teu adormecer como remédio
Tuas redivivas angústias de pequena
As refeições que longínqua preparavas
Tua pele falsamente serena
E eu que te sabia
Que te lia
Para te ver no suspenso do sono
Te ver sobrevir no meu mundo
Para que me beijasses os olhos
Para que desaguasses nos meus sonhos
Meu Imbolc de esperanças,
Onde acontecíamos de mãos dadas…

Mãe, que cartas
Quando o teu medo se colou
Às galerias da minha pequenez
Onde num baloiço te esperava?
Mãe, que cartas que letras
Poderiam danificar o teu pesar
Além de ti para fora de mim
Que sonhar para te fazer sonhar
Que morfeu que arlequim
Amarraria nos teus cabelos
Quando tu estás para lá do mundo
Tão remota de tudo
Tão perto do Fim?

terça-feira, 26 de junho de 2012

A sombra que o mar tem


Para que o teu nome transpire na página
É preciso dar-te as semiluas palavras
Sem ter garganta onde a voz se cumpra
É preciso dar-te a morosa embriaguez
Com que sempre agrides a noite
Sem ter copo para irrigar a utopia dos lábios

Para que eu dance submeto-me à transmutação das estátuas
Submeto-me para cumprir do meu ar à tua terra o mar
Submeto-me
Quando lanças as clandestinas letras lobos em volta do verbo Livre
E o fio desabitado e inteiro do sanguíneo rasto consagra a página
Enquanto entornas nas margens afiadas nódoas ténues nós vírgulas
Peixes de vidro tingidos de asteriscos ganchos antigos faróis
Azulados lumes no enevoado e exíguo princípio de um búzio
Onde alguém arrasta ruidosamente a cadeira para ir morrer sozinho
Envolvido de envidraçados peixes labaredas de verdes letras
Que perfuram e mergulham e emergem pelas alamedas da folha
Onde os barcos que comandaste partiram para o fim do verso

Mas a beleza foi um fragmento de papel que sem querer alguém rasgou

sábado, 23 de junho de 2012

A RODA DOS EXPOSTOS, excerto


A espera.
As pedras que sustêm o círculo recuam ao gélido toque da sombra. Alastra-se, soberana, enegrecida de vingança, altiva de mantos, bruxa mordaz oponente impiedosa do equilíbrio, parca da discórdia, traição à certeza do gesto concreto: a sombra.
Dissimulada, a sombra estanca todo o luar vertido pela clarabóia e entorna-se demorada e esguia pelo chão, a tentar o silêncio como uma serpente que se assomasse inteira até aos pés do homem que prolonga e a que pertence sem que a eles dependa ou obedeça.
A respiração cadenciada do homem vertical é densa e suave e mesmo que a sombra o desafie a elevá-la ele sabe que não se pode expor. As mãos recolhidas na treva do manto iludem de estáticas, mas a ruga flectida entre os olhos denuncia-o. Do alquebrar vago do seu tronco admite-se até uma ponta de desassossego, apesar do homem vertical estar quieto, a sua sombra persegue as paredes e inquieta a respiração.
Além da respiração, o suspiro insinuado pela sombra omite o vibrar de chaves que entre os dedos escondidos tremem e o da que entre elas foi a cúmplice que abriu a porta para o imperdoável pecado do amor. A porta, o quarto que testemunhou a inseminação do profano, éden macabro de serpenteantes suspiros, oculto tantos degraus abaixo dali, mas é tão elevada a sua assombração. A abjecta crueza do ferro, o homem quer enterrá-la no sabugo das unhas – hereges da pele inocente -, para a esconder fundo na memória. Apunhala a chave pela cabeça e esmaga-a com a força do remorso. O sangue cavalga e na investida cega mancha os pés da sombra - a sombra de súbito retrai-se de ardor, presa do dilúvio cor de vinho-, o sangue viola o manto, o sangue intimida o luar, o sangue suja as pedras, pinta o circular som do silêncio. O sangue: seu único acto de contrição.
Ainda, no bolso, uma faca.
A espera.

O Desfiladeiro das Insónias


Além dos cílios embutidos de Abril
Além das pálpebras crispadas do pó visionário
Dentro dos espinhos do teu fleumático dilúvio
Desenho
Uma rosa de neve um lírio de água
As garras abertas dos gritos da Sombra
A galopar as nuvens sobre o naufrágio do dia
Sobre os atlânticos cascos da tua gargalhada
Sobre a casa fechada onde ainda dormito
Na aquática languidez do miolo de uma Nuvem
A encarar o agudo desfiladeiro das insónias
A aguentar os livros a resistir o hálito das palavras
Contra a ventania das Horas a tiritar de claustrofobias
De pavor
O nada a respirar debaixo da cama
A cama na tua gargalhada a tremer
A prontidão do olhar coagido pela esperança de uma voz recordada
A ideia com excertos de escadas invertidos ao escrever
A ideia: olhos d’areia a transitar o vidro duma asa
A ideia: ectoplasmas aos tombos na mágoa
A ideia: a afinar o sobrevoo da existência
Com uma asa interrompida no oculto lago de um livro
Na ausência das águas a transparência
Duma quimera embala-me para dentro do teu peito onde
Adormeço           aos fragmentos
Com a cabeça pesada de sonhos

A Obra


De porta em porta atravessada
Há que conter a transparência da morte
Ter na cabeça uma vara de vedor
Ser circular e transitório como um nó
Entre aorta e pesadelo
Ter nos órgãos carregados charcos
E poças nas mãos
Bolsas de água cuidadosamente amparadas
Nos dedos
E uma enorme estrela sob os pés
A despertar