sexta-feira, 21 de setembro de 2012

SÓ AS NOITES DEPOIS DA DESPEDIDA



Só as noites depois da despedida se podem celebrar musas
Com seus cabelos de tenebrosa avalanche de dúvidas
Seus dedos pálidos de alegoria de catacumbas
Sua infinita boca de hermética humidade a ecoar
Seus crípticos olhos de alheamento cruel e breve

Só as noites depois da despedida são as únicas futuras
De pés aos farrapos adiados pelos subterrâneos das estações
Com os flocos da intuição revolvidos dos invernos em suspenso
E o órfão nome da besta tremulamente domesticado pela espera

Só as noites depois da despedida se podem considerar definitivas
Onde encalharam os marinheiros de pó e o nevoeiro dos abismos
As pontes velhas desmoronadas e as luvas dos homicidas cauterizadas
Os gritos adormecidos na confiança da revolta pelo sangue de alguns poetas
As viúvas e as amantes e as filhas e as prostitutas e as anónimas que acreditam
As convulsões depois das feridas e o choque e o asfalto das palavras caladas
A combustão das crianças e dos cigarros que continuaram a caminhada
Os livros que não conseguem morrer
E que adormeceram na esperança da ressurreição ámen

Só as noites depois da despedida são de resistência
Porque diante delas a poesia cumpre-se mais sincera
E as janelas ainda obstruídas abrem-se para os lagos da miséria
Nos quartos da alma acumulados de certeza até ao tecto
Inúteis como polícias na cena de um crime
E os panos dos espelhos cedem ao olhar compassivo sobre ele mesmo
O olhar cansado onde o adeus às lágrimas começou há tanto tempo
Sobre os livros cravejados de rosas mordidas que ainda respiram
Por quem os sinos dobram como o ano da morte de um amante
Que atravessou o meridiano onde a leveza de carácter era insustentável

Só as noites depois da despedida são a perturbação da verdade
Onde se adoece pelos vendavais do medo como uma andorinha ou um gato
Por cento e vinte anos de solidão e cólera
Noites de inferno inclusas num pêndulo ao pescoço
Como um Quixote sem ficções
Como quem espera ver o anjo o corvo
Um pequeno príncipe em desassossego

É nas noites depois da despedida que os festins estão nus
Que se anuncia a cama
No pináculo da montanha mágica onde o paciente iluminado
É um deus de fogo agrilhoado e nu que se levanta
Um viajante em busca de um tempo perdido
Numa noite de inverno ao fim da tragédia

É nas noites depois da despedida que os pauis ganham sentido
A aparição revelada de um deus sobre as ondas com as duas tábuas da poesia
Um anjo maldito que sobre as moscas e sobre as ratazanas partisse
Ao som da flauta que um velho toca lá longe no fim do mar
E mesmo que a tabacaria tenha fechado para férias,
Que os que se amam se reencontrem na fome e na náusea do escrever

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