Só as noites depois da despedida se podem celebrar musas
Com seus cabelos de tenebrosa avalanche de dúvidas
Seus dedos pálidos de alegoria de catacumbas
Sua infinita boca de hermética humidade a ecoar
Seus crípticos olhos de alheamento cruel e breve
Só as noites depois da despedida são as únicas futuras
De pés aos farrapos adiados pelos subterrâneos das estações
Com os flocos da intuição revolvidos dos invernos em
suspenso
E o órfão nome da besta tremulamente domesticado pela espera
Só as noites depois da despedida se podem considerar
definitivas
Onde encalharam os marinheiros de pó e o nevoeiro dos
abismos
As pontes velhas desmoronadas e as luvas dos homicidas
cauterizadas
Os gritos adormecidos na confiança da revolta pelo sangue de
alguns poetas
As viúvas e as amantes e as filhas e as prostitutas e as
anónimas que acreditam
As convulsões depois das feridas e o choque e o asfalto das
palavras caladas
A combustão das crianças e dos cigarros que continuaram a
caminhada
Os livros que não conseguem morrer
E que adormeceram na esperança da ressurreição ámen
Só as noites depois da despedida são de resistência
Porque diante delas a poesia cumpre-se mais sincera
E as janelas ainda obstruídas abrem-se para os lagos da
miséria
Nos quartos da alma acumulados de certeza até ao tecto
Inúteis como polícias na cena de um crime
E os panos dos espelhos cedem ao olhar compassivo sobre ele
mesmo
O olhar cansado onde o adeus às lágrimas começou há tanto
tempo
Sobre os livros cravejados de rosas mordidas que ainda
respiram
Por quem os sinos dobram como o ano da morte de um amante
Que atravessou o meridiano onde a leveza de carácter era
insustentável
Só as noites depois da despedida são a perturbação da
verdade
Onde se adoece pelos vendavais do medo como uma andorinha ou
um gato
Por cento e vinte anos de solidão e cólera
Noites de inferno inclusas num pêndulo ao pescoço
Como um Quixote sem ficções
Como quem espera ver o anjo o corvo
Um pequeno príncipe em desassossego
É nas noites depois da despedida que os festins estão nus
Que se anuncia a cama
No pináculo da montanha mágica onde o paciente iluminado
É um deus de fogo agrilhoado e nu que se levanta
Um viajante em busca de um tempo perdido
Numa noite de inverno ao fim da tragédia
É nas noites depois da despedida que os pauis ganham sentido
A aparição revelada de um deus sobre as ondas com as duas
tábuas da poesia
Um anjo maldito que sobre as moscas e sobre as ratazanas
partisse
Ao som da flauta que um velho toca lá longe no fim do mar
E mesmo que a tabacaria tenha fechado para férias,
Que os que se amam se reencontrem na fome e na náusea do escrever
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